Há inúmeras histórias de reis e imperadores cruéis, que fizeram atrocidades com outras nações e com a sua própria. Passaram por cima de toda a convenção social e desrespeitaram culturas, acabando com etnias e nações por inteiro. Porém, esses homens por vezes são reconhecidos como grandes heróis por seus feitos predatórios e conquistadores. Eles recebem homenagens e estátuas como se tivesse representado a nação e feito um bem para a população e para a história.
Conheceremos Ranavalona I, uma mulher forte e que tomou atitudes cruéis e brutais, que nada diferem de reis e imperadores, mas, por ser mulher, é vista como louca, descontrolada e uma mancha na história. É vista como uma vilã pelo ocidente; uma figura a ser extinta da mente de todos, largada e jogada ao esquecimento.
Ranavalona I foi uma mulher forte que, inserida em uma sociedade machista e influenciada por um ocidente que reforçava essa ideia, lutou, de forma contraditória, pela sua cultura, pela sua religião e pela sua dignidade. Após o reinado dela, Madagascar teve uma longa dinastia de mulheres no comando. Conheça Ranavalona I, a rainha impiedosa de Madagascar.
O início
Rabodoandrianampoinimerina, também conhecida como Ramavo ou Ranavalona I, nasceu no ano de 1778 em uma família comum e não tinha laços com a realeza. Quando seu pai descobriu que cidadãos e pessoas envolvidas na política local estavam arquitetando um plano para assassinar o futuro rei, apressou-se em alertar as autoridades. Graças ao aviso do pai de Ramavo, o plano falhou e, mais tarde, Adrianampoinimerina subiu ao trono. Em gratidão para com quem salvara sua vida, o rei adotou Ramavo ainda bebê como sua própria filha, oferecendo-a em casamento ao seu herdeiro, príncipe Radama. Como ela era a primeira das doze esposas do príncipe, o primeiro filho do casal seria o sucessor do trono.
Andrianampoinimerina morreu e Radama tornou-se rei. O último seguiu os passos de seu pai e continuou a unificar a Merina e expandir o seu território. Radama estreitou relações com os franceses e os ingleses, permitindo que disseminassem o cristianismo pela região e que construíssem escolas e outras instalações. Radama era a favor da modernização ocidental e desejava que a população recebesse uma educação europeia. O rei permitiu que os conceitos do Cristianismo fossem aplicados na sociedade de Madagascar, o que ofuscou a cultura local, chamada de Malgasy. O rei contribuiu muito para a evolução bélica do país, se comprometendo a construir um exército poderoso que o ajudou a expandir o território da Merina.
A cultura local
A cultura da Merina tinha um sistema curioso de hierarquia. A história não era vista como uma criação humana momentânea, mas sim algo que vinha de ligações com os ancestrais. Portanto, um político ou líder era aquele que estava mais conectado com os ancestrais e conseguia espalhar com facilidade os benefícios dessa proximidade, que, basicamente, era de exercer grande influência e status em razão das suas proximidades com importantes personagens do passado. Com o aumento rápido do território e a prosperidade da Merina, a hasina (nome cunhado por Gerald M. Berg para conceituar a cultura da região) tornou-se mais importante e se difundiu, gerando novos ancestrais e ligações sociais.
A população da Merina sempre teve uma ligação profunda com seus ancestrais, de modo que isso constituía a forma com que se formavam os grupos sociais da região. As pessoas dividiam-se em atividades de acordo com a influência que seus ancestrais tiveram e a importância da posição social que ocupavam. Desta forma, os que tinham ligações com figuras importantes, como políticos, membros da realeza e comerciantes de sucesso, possuíam mais “sorte” em sua jornada.
Os que nasciam para mandar mandavam e os que nasciam para obedecer, assim o faziam. A região da Merina cresceu sob o poder de cidadãos fortes que que expandiram seus territórios por meio de dominações e força militar e, graças a cultura da hasina, prepararam o terreno para seus descendentes, tornando-se eles mesmos ancestrais de forte influência e poder.
Como a sociedade foi embasada em algo que engloba todo o acaso humano e todas as ações podem ser baseadas em ligações e vontades dos ancestrais, mudanças à curtos prazos poderiam ser interpretadas como o desejo dos ancestrais e os acasos políticos interpretados como uma forma dos ancestrais consolarem vitoriosos e derrotados.
Ou seja, uma decisão controversa ou ilógica por parte de um político ou do próprio rei poderia ser justificada utilizando a hasina. Quem detivesse o poder da hasina poderia exercer sua força e poder sobre os outros. A hasina trouxe ordem a um povo sob circunstâncias difíceis, criou uma hierarquia social na qual a dominação dos ancestrais concederam poderes às autoridades da Merina.
Ramavo assume o trono e se torna símbolo da luta feminina
Radama nomeou seu sobrinho Rakotobe como sucessor ao trono, já que o rei não tivera nenhum filho com Ramavo. Mas, pela lei Malgasy, qualquer filho de Ramavo viria a assumir o trono assim que pudesse. Rakotobe era adepto das ideias do tio e havia passado tempo na Inglaterra para estudar, em 1821. Sendo um estudioso da cultura e arte ocidental europeia, Rakotobe era visto como um sucessor que seguiria os passos de Radama. Sabendo do risco de perder o trono a qualquer momento, Rakotobe fez planos para assassinar Ramavo e se assegurar como futuro rei. Os mais tradicionais e comprometidos com a cultura Malagasy estavam preocupados com a expansão do cristianismo incentivada por Radama e temiam que Rakotobe trilhasse o mesmo caminho do seu tio.
Radama tinha muitas esposas, mas nenhum herdeiro e, em decorrência de uma doença sexualmente transmissível, o rei faleceu e a disputa pelo trono começou. Em algumas semanas, Rakotobe e Ramavo se movimentaram para tomar o palácio e conseguir apoio político, militar e popular. O povo tinha medo de que, com a morte de Radama, a Merina perdesse a força e a influência dos ancestrais. Radama morreu em meio a colonização dos europeus, por volta de junho de 1828, quando os missionários e os acadêmicos tinham relações estreitas com o estado. Radama deixou um vasto exército sem um líder e a insegurança tomara conta do povo de Madagascar.
Ramavo agiu de forma astuta, aproximando-se de líderes religiosos e legisladores que tinham como base a cultura tradicional da Merina. Com a ajuda de líderes do exército e políticos comprometidos com a cultura e os costumes locais, Ramavo tornou-se rainha de Madagascar, trocando seu nome para Ranavalona I.
No dia 1 de agosto de 1828, Ranavalona I assumiu o trono e dias depois passou por uma cerimônia em que teve seu corpo banhado no sangue de um boi recém morto. A rainha cresceu na realeza, portanto, teve grande influência da cultura europeia, sendo sua cerimônia bem próxima dos padrões europeus. Rakotobe e alguns parentes já haviam sido mortos, com exceção de sua mãe.
Havia uma tradição em Madagascar de que sangue feminino real não poderia ser derramado, dessa forma, Ranavalona optou por deixar a irmã de seu marido morrer de fome. Durante a coroação, a rainha proclamou as seguintes palavras: “Nunca diga que ela é apenas uma mulher fraca e ignorante, como ela pode governar um império tão vasto? Eu governarei aqui, para a boa parte do meu povo e a glória do meu nome! Não adorarei deuses senão os dos meus ancestrais. O oceano será a fronteira do meu reino, e não cederei a espessura de um fio do meu reino!”.
Sob a tutela de Ranavalona, rituais sagrados da hasina tornaram-se peça central da Merina. Difícil pensar que antes da morte de Radama isso seria possível. A população estava temerosa após a morte do rei, o elo que ligava toda a Merina aos ancestrais havia falecido. Mesmo parecendo autoritária em seus discursos e em algumas decisões, Ranavalona I teve apoio de líderes do exército e dos cidadãos tradicionais do país. Grande parte do apelo a rainha se dava pelo seu comprometimento com as tradições locais e sua vontade de colocar o país como soberano de seu território, sua cultura e sua religião.
Ranavalona I foi a primeira rainha da Merina e isso deu uma atenção especial às mulheres, que formavam a base das famílias de Madagascar. Os rituais diários as colocavam em posições desafiadoras, de modo com que suas vontades e decisões poderiam causar conflitos. O reinado de Andrianampoinimerina e Radama centralizou o poder nas autoridades políticas e reduziu consideravelmente a autonomia de grupos sociais locais, como a família. Quando os reis determinaram que eram os únicos que poderiam criar descendentes, as mulheres se opuseram à essas reinvindicações.
O histórico dos reis com as mulheres não era bom. A prova disso são relatos de uma revolta durante o reinado de Radama, causada pela sua decisão de forçar os soldados a cortarem seus cabelos. A medida ia contra a tradição Merina de permitir que as mulheres trançassem os cabelos de seus homens. O ato era um símbolo da ordem social e, revoltadas, as mulheres cercaram o palácio e protestaram contra o rei Radama.
A resposta de Radama foi drástica. O rei matou as principais líderes do movimento e para deixar como exemplo, ordenou que dessem seus corpos para os cachorros comerem em praça pública. O ato de violência excessiva de Radama mostrou como as mulheres, representantes da casa e da família, significavam um impedimento para as políticas do novo império.
A evolução diante da tutela da nova rainha
O ano de 1929 foi um ano importante para Madagascar. Já era possível ver as mudanças no modus operandi de Ranavalona, que teve atrito com os missionários, acusando-os de serem pouco úteis e ensinarem práticas pueris. Após a afirmação, os missionários contribuíram muito para o desenvolvimento da região, auxiliando na distribuição da água, no desenvolvimento de recursos como o sabonete, o potássio e o enxofre.
Os missionários também providenciaram um moinho para que o país produzisse a própria pólvora. A instalação era de fundamental importância, já que os franceses decidiram atacar a costa de Madagascar no mesmo ano. As ações dos missionários renovaram a confiança da rainha e contribuíram para que a prática da religião e dos costumes europeus continuassem seguras.
Ao contrário de seu antecessor, Ranavalona I preferia governar de forma mais discreta que Radama. Enquanto o antigo rei afirmava sua autoridade exibindo exércitos e se lançando em batalhas, Ranavalona I preferia a política, as táticas e os documentos. Prezava mais por escribas do que por soldados e preferia a comunicação escrita a comunicação verbal. Ela continuou com algumas políticas da época de Ramada, mas com um novo método. Ao invés de grandes reuniões (chamadas de kabary) para comunicar as leis e as políticas do reino, Ranavalona I optava por escrever cartas e documentos para legislar, compensando sua falta de experiência com discursos e aparições públicas.
Há relatos de que os missionários estrangeiros estranhavam a forma de comando, além de ser contra os rituais e as manifestações da ideologia local. A hasina tornou-se peça central da cultura de Madagascar, contando com o apoio e participação de Ranavalona I nas celebrações. Os missionários viram isso como um triunfo do inimigo. Para os europeus, uma administração regrada pela afirmação de autoridade burocrática não era uma boa forma de governar. Para eles, Madagascar era um reino místico regido pela ideológica teatral da hasina. A falta de exércitos e de manifestação teatral de poder de Ranavalona I deixava os europeus desconfiados de sua capacidade de controlar o povo da Merina.
Por meio de rituais bem elaborados e políticas bem estabelecidas, Ranavalona I tornou-se a grande portadora da hasina que seu povo esperava. Sua palavra e suas ordens, repassada de forma escrita, reforçou a obediência e a confiança do povo da Merina em seu reinado. Pela sua preferência pelos livros, Ranavalona I manteve uma boa relação com os missionários e os estrangeiros europeus. Estes serviram ao seu reinado como artesãos, arquitetos, professores e escribas. Construíram as primeiras instalações para a produção de pólvora, imprimiam livros e ergueram escolas para a população Merina.
O ataque francês e a mudança na política econômica
Em 10 de outubro de 1929, a França lançou um ataque em Tamatave. O fato assustou os missionários locais, que faziam questão de se manifestarem não franceses para não serem alvos de ataques xenofóbicos. A rainha conseguiu suprimir os ataques e as tropas francesas recuaram. Após a ofensiva, Ranavalona I se tornou mais amigável com os britânicos, permitindo aos missionários batizarem a população local, disseminarem o cristianismo e suas ideologias. Convivendo harmonicamente com os missionários e os estrangeiros, Ranavalona I optou por dedicar-se ao comercio do país.
Após reprimirem as tropas francesas, a rainha direcionou sua atenção para os postos comerciais mais importantes de Madagascar – Fenoarivo, Foulpointe e Tomasina – os portos eram o contato direto do país com a economia global. Ranavalona I decretou que o gado e p arroz exportados só poderiam ser pagos com a moeda forte. Entretanto, a rainha se mostrou atenta e flexível, de acordo com as necessidades do momento.
Ordenou que as exportações fossem pagas com munições e enviou instruções detalhadas aos portos de como vender os produtos. Os comerciantes não deveriam pagar importações com moeda forte e deveriam comprar gado e arroz locais para exportarem. A rainha preocupou-se em manter o dinheiro no próprio país, deixando claro que não se deveria pagar por importações com dinheiro.
Ranavalona I utilizou os líderes militares para administrar os portos, tornando-os mestres do comércio e da economia. Ao longo do tempo, a rainha buscava reduzir a dependência de Magadascar para com mercados estrangeiros, moldando suas políticas para instigar e incentivar a produção local. A rainha exigia de seus administradores portuários relatórios de exportações e importações detalhados, com informações sobre cada transação, que seria analisada minuciosamente por ela.
Ranavalona I governava por meio de cartas e escritórios políticos fechados. A rainha não participava das kabary, reunião para definir e comunicar novas políticas, não se encontrava com as autoridades portuárias tampouco políticas. Mas a rainha enviava cartas com ordens detalhadas e com palavras fortes que mostrassem e reforçassem a sua autoridade dentro do reino. Mesmo sem estar presente, a rainha tomava conhecimento de tudo que acontecia em seu território, inclusive o que era falado nas kabary. A rainha mandava avisos a quem ousasse criar leis e políticas no nome dela.
Desta forma, Ranavalona I tinha a lealdade de todos sem ter presença física, utilizando de cartas e documentos muito bem redigidos, com referências e citações aos seus antecessores, Adrianoimperimerina e Radama. Ranavalona I era detalhista e quando utilizava de uma regra criada por um monarca anterior, anexava o documento escrito pelo mesmo para reforçar sua credibilidade.
As práticas brutais em busca da lealdade
Ranavalona I se mostrou uma rainha centrada e focada em melhorar a vida do seu povo. Com um exacerbado senso nacionalista, Ranavalona I conquistou a confiança de seus cidadãos por meio de boas práticas, mas também ficou conhecida por sua brutalidade e selvageria para com inimigos ou desafetos.
Caso a rainha desconfiasse de alguém, a pessoa era submetida a um teste de lealdade chamado de tangena (uma noz venenosa que causava vômito). Para provar a lealdade, os suspeitos deveriam comer três pedaços de pele de galinha e vomitar as três. Caso não vomitasse os três pedaços, sua lealdade não seria provada e sua pena seria a execução. Ranavalona I utilizou de várias torturas para garantir a lealdade do povo e afirmar sua soberania.
A rainha fazia uso de amputações, crucificações e despejava água fervente sobre a cabeça das vítimas. A sua brutalidade foi interpretada como uma forma de se impor como rainha, pelo fato desconfiança em torno de sua força por ser mulher e pela constante influência estrangeira. Ranavalona I afirmava a sua soberania de forma impiedosa e expunha seus desafetos a morte ou a progressivas torturas.
Andrianamihaja teve uma relação com a rainha e pode ter sido pai de um de seus filhos. Ela se enfureceu quando descobriu que ele estava se relacionando com outra mulher e o submeteu a tangena. Andianamihaja recusou-se a realizar o teste e teve uma lança espetada em sua garganta. Outras tribos de Madagascar sofreram sob a tutela violenta de Ranavalona I, que liberou o exército para pilhar outros vilarejos.
A violência como instrumento de controle e o preconceito por ser mulher
Ranavalona foi a primeira rainha da Merina e encontrou alguns problemas por isso. Apesar de ter se firmado como monarca através de astúcia política, a rainha estava em um sistema endossado por Radama. O sistema que via o homem como centro da sociedade, especialmente no antro militar, base do governo de Madagascar. O ritual fatidra, um dos mais importantes da sociedade Merina, envolvia quase todas as pessoas de grande influência de Madagascar e tornou-se peça central das cerimônias reais no governo de Radama. A prática não podia ser exercida por Ranavalona I, já que esta não tinha relações próximas com Corroller, um agente de extrema importância da ilha que participava do ritual. Corroller era um admirador de Adrianampoinimerina e não lhe agradava que Ranavalona I não cumprisse a tradição.
Sem treinamento militar e grávida, a rainha enfrentava dificuldades por ser mulher e optou por ações violentas. Ranavalona I matou a maioria de seus rivais, inclusive os administradores de confiança de Radama. Em poucos meses, todos estavam mortos e as políticas para se estabelecer se tornaram mais agressivas. Segundo historiadores, os relatos ocidentais tratam Ranavalona I como louca e descontrolada. Viam a rainha como despreparada por ser mulher e com características ‘não-femininas’ (em razão de sua postura autoritária e pela sua brutalidade com seus inimigos, ela era vista desta forma pelos ocidentais).
Ranavalona I reinou simultaneamente com a Rainha Vitória, na Inglaterra, e recebia diversas cartas do país, mas nunca assinadas pela própria Vitória. Ranavalona I se incomodou com o fato e escreveu dizendo que só responderia às cartas que estivessem assinadas pela rainha e não mais por seus servos homens. Vitória é retratada por europeus como uma rainha misericordiosa e gentil, com características femininas, enquanto Ranavalona I era a rainha louca e ignorante que tinha poder demais para uma mulher. Pelo fato de a rainha manter suas tradições e ter autoridade para com estrangeiros, era descrita como regressiva e dotada de características que não seriam apropriadas para uma governante mulher.
Lutou pela sua soberania e conquistou o respeito. Como disse em seu discurso de posse, Ranavalona I governou seu povo e manteve suas tradições, trouxe para as mulheres um novo espaço na sociedade Merina, igualando seus direitos aos dos homens. Graças a Ranavalona I, as futuras gerações de mulheres dispuseram da mesma qualidade de vida oferecida aos homens. Antes responsáveis apenas pelas casas e famílias, as mulheres tornaram-se peças centrais no poder exercido pelo reino.
Sendo mulher e sem treinamento militar, Ranavalona I não podia liderar exércitos, mas construiu sua reputação e afirmou sua autoridade por meio da violência e da tortura, mas também utilizou de métodos burocráticos e políticas comerciais muito efetivos que melhoraram a visão comercial, a economia e a produção do seu país. Por volta de 1840, os relatos da desconfiança para com sua competência e aptidão para liderar se cessaram e ela já era vista como uma governante respeitada.
A guerra com os missionários e o cristianismo
Após a guerra com a França se dissipar, Ranavalona I permitiu que os missionários espalhassem a cultura cristã e ensinassem o povo Malgasy a ler e a escrever. As crianças que haviam deixado a escola foram ordenadas a voltar e após um manifesto dos professores e missionários sobre um descaso do governo, a rainha voltou suas atenções para eles e iniciou reformas, abrindo novas escolas. As escolas ficaram cheias de alunos e as igrejas cheias de devotos, já que o cristianismo era uma matéria ensinada pelos missionários.
A influências do cristianismo foi aumentando, assim como o número de batismos e conversões. Com o crescimento, a rainha percebeu uma crescente evolução da religião e gradativamente começou a proibir algumas práticas, como a comunhão e o batismo. Permitiu que as capelas continuassem funcionando e realizando encontros em residências privadas. Ranavalona I utilizou de uma lei criada por Radama para se livrar dos missionários.
A lei estipulava que os estrangeiros poderiam ficar apenas 10 anos no país, e, após o término do período, deveriam sair imediatamente. A influência de Griffiths e Jones, importantes nomes na difusão da cultura europeia e homens influentes dentro do cenário político de Madagascar foi fundamental para o ápice da proibição do cristianismo no país.
Os dois missionários possuíam amigos entre os políticos do país e conseguiam renovar os prazos de sua estadia na região. Mesmo com as restrições, os estrangeiros realizavam um grande trabalho. Produziram cerca de 20 toneladas de sabão, encerrando a necessidade da importação, auxiliaram na construção de fábricas de nitro e mantiveram a prensa funcionando. No ano de 1833, 15 mil livros haviam sido impressos, entre eles livros escolares, dicionários e livros para catecismo.
Nesse ponto, o cristianismo só podia ser praticado entre pares, a evangelização não era mais permitida. Mesmo assim, a procura era grande e o tráfego de pessoas nas capelas aumentava. O sacramento (batismo, comunhão e casamento) era a única proibição imposta aos cristãos. Como o evangelho era uma importante matéria do currículo escolar, os missionários rezavam nos vilarejos e mantinham cultos nas duas capelas da capital. A religião se espalhou pelo país e trouxe a desconfiança por parte do grupo tradicionalista de Madagascar. Dois episódios elevaram a desconfiança de Ranavalona I para com o cristianismo.
A expulsão total dos missionários de forma cruel
A situação entre os tradicionalistas e os missionários cristãos ficava cada vez mais tensa. Com a expansão do cristianismo, Ranavalona I via que seus princípios culturais e a natureza religiosa de seu país estava sendo perpassada e deixada de lado pelos próprios cidadãos locais. Uma sucessão de episódios envolvendo a religião incomodou tanto a rainha que ela optou pela expulsão e a perseguição dos cristãos.
O primeiro deles foi quando Ramahavaly, o chefe de um culto tradicional de Madagascar, entregou à Griffiths uma estatueta de um ídolo local para ele levar a Inglaterra. O missionário fez pouco caso do presente e disse que colocaria outro pedaço de madeira qualquer no lugar. O segundo acontecimento foi com um adorador de ídolos que pregava sua própria versão do cristianismo. Rainitsiandavana dizia que quando cristo voltasse, a escravidão acabaria e todos os homens estariam livres. Após uma série de perguntas dos oficiais da rainha, foi interpretado que suas visões e opiniões colocavam um escravo de Moçambique e a rainha em equidade. Os oficiais chamaram os discípulos chefes e jogaram água fervente sobre a cabeça deles até morrerem.
No dia 1 de março de 1835, foi comunicado na kabary que as práticas cristãs estavam estritamente proibidas. Os missionários poderiam ficar para ensinar matemática, história e para ensinar a população a ler e escrever. Com a proibição, diversos missionários optaram por ir embora de Madagascar. Nesse período, o governo estava implacável e há relatos de que 200 ladrões foram executados em uma semana na capital. Alguns cristãos se arriscavam e mantiveram encontros secretos para espalhar sua fé e manter contato com os missionários que decidiram ficar no país.
Quando Johns e Baker saíram da ilha, os cristãos ficaram desprotegidos. Os missionários eram importantes peças na manutenção dos livros e nos ensinamentos da capital. No ano seguinte a saída, um grupo de cristãos foi capturado e condenado a escravidão eterna. Uma mulher chamada Rasalama se recusou a revogar suas crenças e foi assassinada, sendo o primeiro mártir cristão de Madagascar. As punições tornaram-se mais severas e diversos grupos cristãos foram submetidos a escravidão e executados.
Uma das punições mais cruéis imposta pela rainha foi quando ela ordenou que quinze cristãos fossem amarrados na beira de um penhasco. As cordas foram cortadas uma por vez até que todos caíssem e morressem. O reinado ficou cada vez mais violento e o assassinato de cristãos e de pessoas que iam contra as ideias e opiniões da rainha se tornaram práticas comuns. Em 1845, Ravalona organizou uma marcha de 50 mil pessoas para caçar búfalos. Com poucos suprimentos e obrigados a construir uma estrada, estima-se que 10 mil morreram de fome e exaustão em um período de 4 meses. Nenhum búfalo foi caçado.
Um enterro nada ortodoxo para uma rainha única
Ranavalona I teve um filho chamado Rakoto, que não concordava com suas práticas. Em 1857, Rakoto e Laborde arquitetaram um plano para acabar com a vida de Ranavalona I. Graças a espiões, a rainha sabotou o plano e matou a maioria dos conspiradores. Rakoto sobreviveu às punições e implorou pela vida dos europeus que restaram. A rainha foi misericordiosa com seu filho e com os companheiros que ainda não tinham sido assassinados. Rakoto assumiu o trono de Madagascar, mas foi morto dois anos depois devido a sua baixa popularidade e decisões que não agradaram as autoridades e nem o povo.
Ranavalona I foi uma rainha impiedosa. Determinada a mudar a opinião dos seus cidadãos, utilizou de métodos diferentes e revolucionários para a época. Iniciou práticas burocráticas e políticas e administrou um governo mais político e menos militar. Fez uso de meios violentos e ardilosos para afirmar seu poder e sua autoridade. A rainha foi implacável com seus inimigos e seu reinado foi banhado em sangue. Mas Ranavalona I passou por dificuldades únicas pelo fato de ser mulher e é retratada até hoje sob olhos ocidentais preconceituosos.
Durante quase todo o século 19, Madagascar foi governada por mulheres e manteve parte de sua cultura e costumes graças às atitudes da rainha. Retratada como louca e cruel, a rainha utilizou de métodos nada ortodoxos para buscar igualdade e conseguiu melhorar o ambiente para suas descendentes mulheres. A rainha tornou-se uma portadora da hasina durante sua vida e, após sua morte, distribuiu a hasina não só para suas descendentes, mas para todas as mulheres. Enquanto europeus praticavam genocídios e matavam culturas mundo afora, Ranavalona I agiu igualmente a seus inimigos, mas para responder ao colonialismo europeu e preservar sua cultura, suas raízes e sua história.
No dia 16 de agosto de 1861, Ranavalona I morreu pacificamente. Conta-se que em seu funeral, um barril de pólvora explodiu e matou uma parte dos presentes. Sem dúvida, um velório a moda de Ranavalona I.
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